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DOCE, SALGADO, AZEDO

O acordo tácito era de que deveria permanecer de olhos fechados. Deitado no chão, assim, sem camisa. Sentiu o azulejo frio nas costas. A pele no chão. E logo os pequenos grãos de poeira grudando pelo corpo. Os olhos fechados ampliando toda percepção.



Súbito, a língua dela a roçar-lhe os lábios. Não pode pensar em mais nada.



O roçar não era aleatário. Tinha a precisão de um experiência científica, testando diferentes contatos e formas de sentir algum sabor no lábios do jovem estendido no chão. Nada dava a impressão de que a língua dela pudesse avançar a um beijo forte e definitivo. Ainda que quente, ainda que deixando escorrer um pouco de saliva para dentro da garganta dele, a língua prosseguia seus trajetos definidos e decididos pelos lábios. O interior da boca era terreno ignorado.



Primeiro a ponta da língua no lábio inferior e, deslizando rumo ao canto da boca, onde se unem as faces superior e inferior das carnes da boca, buscava contatos inesperados. Depois, tocando a outra junção dos lábios.



Satisfeita aí, ela passava a usar a lateral da língua, indo da parte fina e mais seca até a base da língua, carnuda e molhada que agora se encontrava entre os lábios dele, como se fora algo prestes a ser mastigado e engolido. Mas ele não mastigava, não se movia. Tremulava levemente, mas continha-se respeitosamente, apavoradamente, deliciosamente, nada fazia, apenas se permitia.



O desejo de agarrar com a sua a língua que lhe passeava vinha e ia como um instinto básico, mas a clara consciencia das regras do jogo freava o reflexo. Ele ali permanecia, boca entreaberta, língua recolhida e imável, engolindo a saliva que escorria despreocupadamente de sua científica parceira. Sem sabor, mas deliciosamente viscoso, o líquido lhe escorria garganta a dentro.



Agora era a superfície toda da língua que o lambia, algo felino, tocando ambos os lábios num único contínuo e lento movimento, encharcando a boca e enlouquecendo-o de vontade e tesão. Por vezes ela parava, língua tocando toda a boca de sua cobaia, como se pensando qual seria o práximo passo. Essa frieza excitava-o sobremaneira. Percebia-se a tremer, o pau completamente duro tinindo de tesão, a pele suando sobre o chão frio, as mãos contraindo-se para controlar o desejo. E ela fria, calculista, experimentando-o como a um sapato novo.



De súbito ela se levantou, ergueu-se, abandonou-o desinteressada. Havia descoberto tudo que queria na boca dele e estava agora em pé. Ele sentiu os dedos dos pés dela tocando seus ombros e abriu os olhos. Ela olhava para baixo. Exatamente sobre o rosto dele, um metro e meio acima, estava o dela, invertido. Com ambos os pés ao lado de suas orelhas com uma expressão de curiosa reflexão sobre algum assunto insondável.



Como ele a olhava perplexo pela beleza da cena, ela ergueu levemente um dos pés e deu-lhe um pequeno chute no rosto. Um ato de delicada violência que insinuava uma ordem. Ele compreendeu e a boca semicerrada de espanto abriu-se completamente, expondo em seguida a longa língua para fora.



Do alto, lentamente, ela deixou cair uma grossa linha de saliva que pousou carinhosa sobre a língua dele, cobaia que contorceu-se de prazer e pânico, entre o reflexo natural de esquivar-se e o prazer elaborado de usufruir o momento. Fechou os punhos, quase dobrou uma das pernas. Mas manteve-se imável, preso por correntes invisíveis de prazer, a tremer sob os pés da jovem. A saliva escorria lenta pela língua para sua garganta enquanto ela abandonava outros e outros fios de saliva para ele.



Atingiu olhos, bochechas, pescoço, mas principalmente, a boca, que inundava-se cada vez mais. Os longos fios sá cessaram quando do alto ela pode vislumbrar uma pequena poça na boca dele. Observou por instantes e com os pés descalços deu outro comando que dessa vez dizia:



- Engole.



Ele obedeceu e ascendeu aos céus. Protegido e amado. Engolia algo que não era seu, que era superior.

Enquanto a boca se abria para retomar o ar, ela meteu ali um calcanhar. Por reflexo, ele escancarou-se e lambeu de leve um sabor escuro de pés sujos de poeira urbana, pá e fuligem adormecidos na pele doce da sola dela. Tocou a lateral do calcanhar com os dentes, e logo estendeu toda a língua para fora, lambeu a sujeira. Ela iniciou então um lindo movimento, variando pela boca toda a extensão do pé, do calcanhar aos dedos. Limpava assim os pequenos pés enegrecidos na saliva da cobaia, que saboreava o chão da casa e o suor de pele alva misturados. Sujeira, maldade, amor e sutilezas.

Assim proseguiram até que os pés estivessem limpos e o sabor fosse agora apenas de saliva e pele. Na língua dele, um líquido enegrecido de saliva e fuligem restava. Molhado, o pé dela, antes de pisar outra vez o chão, passou pelo peito nú deitado até secar-se.



Ela caminhou até uma cadeira, sentou-se, ergueu o outro pé de sola igualmente negra, e olhou nos olhos dele, pela primeira vez agora com ternura. Ele sabia o que era. Virou-se de bruço, rastejou até ela e abriu a boca. Dessa vez, ela meteu o pé quase inteiro no vão da cabeça dele. O cheiro e o gosto de sujeira eram inebriantes. Ele tremia-se todo de tesão com a pau duro e quente empurrando o piso de azulejos.



Ela o olhava para ele com amor verdadeiro, ciente de que eram feitos da mesma matéria. Dedos entre dentes, ele sorria, imundo. Ela recuou o pé e sentou-se em meia látus. Levou as mãos aos cabelos. Arrumou-se de leve.



- Se não fossemos irmãos, juro que transava com você.